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A alienação fiduciária de bens imóveis nada mais é que um tipo de garantia para negócios jurídicos, cujas peculiaridades sempre foram objeto de estudos, em especial pelo fato de ser uma criação com tons brasileiros, que se propôs a facilitar a transmissão da propriedade em caso de inadimplência por meio de um tipo de antecipação ou cisão da propriedade em dois níveis, cujo mediato proprietário (credor — mutuante-fiduciário) tem a expropriação agilizada por um procedimento que o beneficia em detrimento do imediato proprietário, o comprador (devedor — mutuário-fiduciário), motivo pelo qual sua natureza jurídica foi pacificada como Direito Real de Garantia sobre Coisa Alheia.

Em que pese a alienação fiduciária tenha nascido no Brasil em 1965, por meio da Lei 4.728, direcionada ao mercado de capitais e com objetivo de promover garantia sobre a venda de bens móveis, complementada pelo Decreto-Lei 911/69, que possibilitava a busca e apreensão desses bens, foi somente com a Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, que os bens imóveis se tornaram objeto desse mecanismo de garantia.

Evidencia-se que, pelo fato de se tratar de um mecanismo garantidor abrupto e consequentemente altamente eficaz, seu uso em face dos bens imóveis foi cunhado dentro de um sistema maior, o denominado Sistema Financeiro Imobiliário (SFI).

Observa-se que a Lei 9.514/94 possui em seu preâmbulo a seguinte nota: “Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências”. Logo, trata-se de uma lei ordinária que cria o denominado SFI e, para consecução de seus objetivos, estreia a alienação fiduciária sobre os bens imóveis que forem transacionados nesse ambiente de fomento do crédito.

Pois bem, essa leitura perfunctória é necessária para que se demarque a premissa legal que cunhou o direito real decorrente da garantia de alienação fiduciária, para — a partir dela — debruçarmo-nos sobre uma suposta celeuma decorrente da interpretação do artigo 38, que trata o requisito de forma previsto para entabular esse mecanismo garantidor.

Alterações e interpretações

O legislador modificou o artigo 38 da Lei 9.514/94 em duas oportunidades. Em um primeiro momento, entre 1997 e 2001, foi coerente e excepcionou a forma pública somente quando o beneficiário final fosse pessoa física e a operação fosse celebrada dentro do ambiente do SFI. A primeira alteração à redação original deu-se em 2 de agosto de 2004 e teve curta vigência, pois foi novamente alterada em 30 de dezembro de 2004.

Essa primeira alteração trouxe dois grandes impactos, quais sejam: deixou de condicionar o uso do instrumento particular ao fato de o beneficiário final ser pessoa física e deixou de restringir o uso do instrumento particular às operações dentro do ambiente do SFI, de modo que qualquer contrato de alienação fiduciária poderia ser feito de forma particular.

Esse período foi curtíssimo (menos de cinco meses), pois a falha evidente precisou ser corrigida para permitir que o instrumento particular pudesse ser elaborado apenas quando o crédito fosse emanado dentro do ambiente do SFI.

Ocorre que, em decorrência das interpretações advindas do breve período supracitado de 2004, os foros judiciais e administrativos dos Tribunais de Justiça estaduais emanaram posicionamentos conflitantes promovendo, aí sim, uma verdadeira controvérsia sobre a correta interpretação do artigo 38, que se somava a incorreta leitura do §1º do artigo 22 da mesma lei, introduzido pela Lei 11.481/2007, cuja inteligência é no sentido de que a alienação fiduciária não é ferramenta de garantia exclusiva do SFI.

Vale apenas esclarecer que há uma distância abissal entre o §1º do artigo 22 e o artigo 38, ambos da Lei 9.514/94, pois o primeiro apenas esclarece que qualquer pessoa jurídica ou física pode utilizar-se do expediente de garantia por alienação fiduciária, enquanto o segundo define a forma para constituição da garantia de alienação fiduciária nas operações do SFI. Não há que se confundir ou misturar os artigos para criar uma suposta leitura sistêmica de que, a partir da formalização desse tipo de garantia, qualquer contrato está dispensado da forma legal prevista no artigo 108 do Código Civil.

Aliás, quisesse o legislador excepcionar a forma pública para qualquer negócio jurídico com pacto adjeto de alienação fiduciária, teria o feito no Código Civil. A inexistência da referida exceção na lei geral e máxima que regula os contratos no Brasil não é omissão desmedida que poderia ser complementada por regulamentação específica destinada a um sistema, o SFI. Trata-se claramente de respeito ao inciso III do artigo 104, cumulado com artigo 108, do mesmo codex, prevendo que a forma prescrita em lei, para negócios que envolvam imóveis, é a escritura pública.

Precedentes e o entendimento do CNJ

Entretanto, como dito, alguns Tribunais de Justiça ousaram interpretar além do ecossistema legal brasileiro e, de forma expressa ou tácita, autorizaram, ou não se pronunciaram contrariamente, ao uso de instrumento particular com efeito de escritura pública para todos os negócios jurídicos, bastando que fossem garantidos por alienação fiduciária. Esses precedentes, eventualmente, se tornaram, em alguns estados, Normas dos Serviços Extrajudiciais, o que gerou também a força inversa em outros estados, que preferiram deixar expressa a limitação do uso do instrumento particular com efeito de escritura pública somente quando o negócio jurídico tivesse sua origem no crédito emanado pelo SFI.

Pois bem, a questão, por envolver o pujante mercado imobiliário, chegou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio de um Pedido de Controle Administrativo (PCA) nº 0000145-56.2018.2.00.0000, impetrado em 2008, em face de Norma do Serviço Extrajudicial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que, de forma clara, pacificava o tema naquele estado federativo, determinando o que a lei previu, ou seja, que atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis podem ser instrumentalizados pela forma particular, desde que celebrado por entidade integrante do SFI, incluindo, ainda as cooperativas de crédito e administradora de consórcio de imóveis. A questão foi julgada pelo plenário do CNJ, que por unanimidade reconheceu a validade da norma mineira.

Lei 14.620/2023

Ademais, não pode passar desapercebido que, antes mesmo do julgamento final do citado PCA (8/8/2023), foi publicada a Lei 14.620, em 13/7/2023, que alterou três importantes leis que regem o mercado imobiliário, todas no mesmo sentido do decidido, quais sejam: 1) Lei 14.063/2020 (sobre assinaturas eletrônicas); 2) Lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos); 3 – Lei 14.382/22 (que instituiu o Sistema Eletrônico de Registros Públicos).

Todas as referidas leis utilizaram a expressão “instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública”, cada qual repercutindo efeitos específicos para os instrumentos particulares com força de escritura pública celebrados pelas instituições financeiras quando atual com crédito imobiliário.

Dessa forma é patente que o fictício debate existente sobre a forma correta e prescrita em lei para o uso da garantia da alienação fiduciária, passou a ganhar oxigenação correta, seja pela decisão do PCA do CNJ, seja, especialmente, pela interpretação sistemática das leis que regem a matéria.

Provimentos do CNJ

O CNJ, coerentemente com o decidido pelo plenário, bem como para aplacar quaisquer dúvidas a respeito da matéria, editou o Provimento 172/2024 da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CN-CNJ), incluindo no Código Nacional de Normas – Tomo Extrajudicial (Provimento 149/2024) o artigo 440-AO, deixando expresso que:

“A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/1997 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (art. 2º da Lei n. 9.514/1997), incluindo as cooperativas de crédito.”

Nota-se que todo o organograma estatal atuou dentro de suas respectivas competências, pois no ambiente do Plenário do CNJ, foi reconhecida a validade da norma estatal e balizado que entendimento tinha respaldo legal.  Ato contínuo, a Corregedoria Nacional de Justiça regulou, dentro de sua atribuição, a atuação dos serviços extrajudiciais, apenas e tão somente deixando expresso o que a Lei 9.514/94 já disciplinava e vinha sendo equivocadamente interpretada ao longo dos anos e complementou determinando que as Corregedorias Gerais das Justiças Estaduais adequassem suas normas administrativas.

Em tempos de crítica sobre a invasão entre os poderes do Estado, pode-se dizer que esse histórico é uma verdadeira memória de como cada poder deve atuar. O Legislativo criou o SFI e estabeleceu a forma legal para formalização dos negócios e a consecução de seus objetivos. Os Poderes Judiciários Estaduais revelaram interpretações, nem sempre corretas, mas respeitáveis, pois fundadas no tumultuado momento normativo que, por sua vez, ativaram, ao final, o poder fiscalizador do Conselho Nacional de Justiça, que devolve uma baliza sólida para o próprio ambiente judicial e extrajudicial atuarem com a necessária segurança jurídica.

Portanto, se em algum momento existiu efetivo imbróglio jurídico sobre a questão da forma para contratação da garantia de alienação fiduciária, ela foi superada em 2004, com a atual redação do artigo 38, dada pela Lei 11.076. O diagnóstico preciso é que remanesceu de lá para cá um ambiente hostil interpretativo que não tinha coerência com o objetivo do SFI, afinal a Lei 9.514/94 criou um microssistema que nunca emanou efeitos exógenos, apenas, endógenos.

Por fim, e a bem da segurança jurídica, a CN-CNJ, por meio do Provimento 175/2024, modulou os efeitos de sua norma, isto porque, já se somavam vozes para alegar o Direito Adquirido nos contratos particulares anteriores à norma infralegal. A resposta foi imediata, eficaz e altamente elogiável, trazida no §2º ao artigo 440-AO com a seguinte dicção:

“São considerados regulares os instrumentos particulares envolvendo alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e os atos conexos celebrados por sujeitos de direito não integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI, desde que tenham sido lavrados antes de 11 de junho de 2024 (data da entrada em vigor do Provimento CN n. 172).”

Conclusão

Essa modulação dos efeitos pôs termo a qualquer discussão interpretativa e estancou urgências (periculum in mora) de pronunciamento judicial sobre o Provimento 172/2024 do CN-CNJ.

Assim, o óbvio que deve sair do anonimato é que ultrapassar a fronteira agora expressamente delimitada pelo CNJ e pela CN-CNJ, autorizando a instrumentalização particular com efeito de escrituras públicas exclusivamente para atos que formalizem a garantia de alienação fiduciária de crédito imobiliário operado no âmbito do SFI, não infringirá a norma da CN-CNJ, mas sim a Lei 9.514/94 e toda a interpretação sistemática das leis que regem a matéria.

Todo desenrolar desse tema mostra com clareza solar que a comunidade jurídica ainda se preocupa, e quiçá terá sempre esse norte de bússola, em preservar os elementos essenciais do negócio jurídico, tendo nesta ocasião sido vencedor o texto da lei em todas as suas vertentes interpretativas, o que dá alívio aos civilistas que trabalham para preservar os importantes alicerces jurídicos que são as fontes do Direito.

Fonte: Conjur

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